sábado, 18 de junho de 2016

O cheiro do outro

"«Para aceitar o outro», disse-me um dia o artista plástico angolano Fernando Alvim, «é preciso aceitar o cheiro do outro.» Alvim tentou com este argumento convencer a direcção de uma importante galeria portuguesa a incluir, numa das suas instalações, um gigantesco  frasco de perfume cheio de um «extracto de catinga» produzido pelo próprio artista. Os visitantes seriam convidados, à entrada da mostra, a abrir o frasco e a servirem-se do produto. A galeria, considerando que aquilo poderia constituir uma ameaça à saúde pública, recusou a proposta. Alvim, que vive em Bruxelas, onde o seu trabalho tem sido muito bem recebido pela crítica, ficou desiludido. Os amigos dele, assustados com a ideia de que, na inauguração da mostra, teriam de utilizar o suor alheio como se fosse perfume, respiraram de alívio. Para aceitar o outro não é preciso ir tão longe. Quanto a mim basta comer a jaca.
Aliás, um fruto excelente."


José Eduardo Agualusa, "A jaca que foi comida viva", in A substância do amor e outras crónicas, D. Quixote, Lisboa, 2000

"Marinheiros de todas as águas"



"Nos subúrbios crioulos de Lisboa já assisti a espantosas festas, como o Kolá San Djon, no dia de São João, que recorda a passagem por cabo Verde dos navios piratas - entre os quais Francis Drake. Nestes bairros toca-se o finaçon e o funána e celebram-se casamentos e baptizados como mandam as tradições das ilhas. Em pleno coração da capital portuguesa, no Poço dos Negros, quem quiser compreender o significado da expressão morabeza, que como a palavra saudade não tem tradução, deve procurar as casas-das-tias, espaços de festa e de convívio onde se cruzam marinheiros de todas as águas. As tias de Cabo Verde estão, naturalmente, em todo o lado onde existem imigrantes das ilhas. As tias e os primos."  

José Eduardo Agualusa, "Bananeiras no Terraço", in A substância do amor e outras crónicas, D. Quixote, Lisboa, 2000


sexta-feira, 10 de junho de 2016

Portugal


Do not walk outside this area

"Quando era criança e via, nos jardins públicos, avisos semelhantes, "Não pise a relva", por exemplo, poucas vezes fora capaz de resistir. Alguma coisa o empurrava com força pelas costas. Não pisaria a relva, porém, sem o desafio da placa. Adão, o nosso pai Adão, talvez nunca tivesse comido a maçã se o Senhor Deus não o houvesse proibido. É muito difícil resistir a uma proibição. Existe uma anedota a propósito: como convencer um francês a lançar-se da torre Eifell? Façam constar que é moda. E um inglês? Expliquem-lhe que se trata de uma velha tradição. E um português, ou antes, um cidadão do mundo lusófono? Digam-lhe simplesmente que não pode, é proibido."

Agualusa, José Eduardo, Do not walk outside this area, in A substância do Amor e outras Crónicas

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Casas ... 3

"Joana deu lentamente a volta à sala. Tocou o vidro, a cal, a madeira. Há muito já que cada coisa tinha encontrado ali o seu lugar. E era como se esse lugar, como se a relação entre a mesa, o espelho, a porta, fossem a expressão de uma ordem que ultrapassava a casa."

Sophia de Mello Breyner Andresen, O Silêncio, in Histórias da Terra e do Mar

Poesia e casas 2

"Dentro de casa o mar ressoa como no interior de um búzio. Quando abro as gavetas a minha roupa cheira a maresia como um molho de algas. Profundos os espelhos reflectem demoradamente os dias. E em frente das janelas o mar brilha como inumeráveis espelhos quebrados. Os móveis são escuros e finos, sem verniz, encerados. O chão é esfregado, as paredes caiadas. Em todas as coisas está inscrita uma limpeza de sal. A exaltação marinha habita o ar. A casa é aberta e secreta, veemente e serena."

Sophia de Mello Breyner Andresen, A casa do mar, in Histórias da Terra e do Mar

Casas ... 1








desenhem aqui a casa do senhor Valéry










"O senhor Valéry tinha uma casa sem volume onde passava férias."

Gonçalo M. Tavares, O senhor Valéry



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sábado, 7 de maio de 2016

Histórias ...




De uma menina de 11 anos que me diz, ouvindo a leitura dos parágrafos iniciais de
 "A Gata Borralheira" de Sophia de Mello Bryner Andresen in Histórias da Terra e do Mar:

- Professora, isto é tão bonito! Tem muitas personificações e comparações, para pensarmos no que estamos a ler! 


"Como uma rapariga descalça a noite caminhava leve e lenta sobre a relva do jardim. Era uma jovem noite de junho, a primeira noite de junho. E debruçada sobre o tanque redondo ela mirava extasiadamente o reflexo do seu rosto."

Outra menina, de 12 anos, depois da leitura de "Os Piratas" de Manuel António Pina:

- Professora, já acabei de ler "Os Piratas", é giro ficar a pensar se o que aconteceu ao Manel foi a sério ou se era um sonho?